Revista de Taijiquan 2011

O significado de tornar-se discípulo

por Liana Netto

O Taijiquan (Tai Chi Chuan) é mais que uma arte, mais que uma técnica marcial. É um caminho de vida, de auto-conhecimento, de aprimoramento físico, psíquico, espiritual e relacional.
O Taijiquan (Tai Chi Chuan) que qualquer escola pode lhe oferecer é pouco para que seu Kung Fu seja bom. Porque ele é apenas o instrumento, e você é a matéria-prima. Mas a escolha de uma escola que tenha raiz, história e tradição é fundamental para que a técnica ensinada seja plena de sentido, conduza a uma prática saudável e a um desenvolvimento profundo e realmente eficaz.

A tradição nos liga a uma estrutura de construção e transmissão de saber, lapidada por muitos mestres ao longo de muitas gerações. Em termos práticos, o mestre tem a função de manter uma linhagem (de conhecimento), com a máxima proficiência, e cultivar nas gerações seguintes técnicas e atitudes adequadas para a perpetuação desta. Filosoficamente, o mestre da escola tem o papel fundamental de espelhar e refletir aquilo que viremos a descobrir em nós e sobre nós mesmos. Ele evoca o mestre de cada um de nós e, portanto, o respeito que temos a ele é, em última instância, o respeito que dedicamos ao cultivo de nossa própria sabedoria.

Tornar-se um discípulo pode significar ser aquele que segue outrem em suas idéias, atitudes, práticas e orientações; mas também representa a faculdade de fazer uso da disciplina, uma derivação não meramente linguística de discípulo, no exercício de se tornar um aprendiz. A confiança na relação discípulo-mestre representa a possibilidade de abrir mão do ego – mas não discernimento -, permitir-se abrir mão do controle (ou da ilusão dele), reconhecer a própria ignorância, e então criar a atitude fértil para ser conduzido por alguém que tenha mais experiência e sabedoria no caminho em questão. Ser servido e conduzido, para aprender a servir e conduzir, e também vir a ser um perpetuador do saber, bem como referência pras gerações vindouras. Assim tornar-se discípulo não é um evento meramente profissional – elegemos e somos eleitos por uma família à qual estaremos afiliados, numa relação duradoura, estável e, reza o bom senso, exclusiva.

Taijiquan (Tai Chi Chuan): arte marcial ou prática para a saúde?

por Daniel Luz

O título deste artigo é uma pergunta propositadamente equivocada, porém útil na medida em que revela como as cisões típicas de nossa cultura informam a nossa maneira de entender e se relacionar com práticas originárias no Oriente. Por que digo que a pergunta é equivocada? Porque situa “arte marcial” e “prática de saúde” numa oposição ingênua, estranha à própria cultura onde se formou o Taijiquan (Tai Chi Chuan).

Então vejamos: a palavra “wu”, que significa “marcial, militar, guerreiro”, é representada por um logograma composto por dois elementos pictográficos: “zhi”, um pé sem marcas indicativas de movimento, significando “parar, limite” e “ge”, uma alabarda (composta por “yi”, “estaca”, acrescido de “yi”, um traço horizontal que representa a lâmina afixada ao cabo). A idéia é “deter a agressão”. Dessa leitura infere-se que, na cultura tradicional chinesa (falando a grosso modo) a “arte marcial” por definição é a arte de “parar as alabardas” ou “limitar o conflito”.

Ocorre que na medicina chinesa a vida do Homem não é vista como o funcionamento de um (bio)mecanismo, mas sim como o gerenciamento político de um Estado imperial, em que o Coração ocupa o papel do Imperador. Este coordena os demais “atores políticos” que são os zang fu (literamente “palácios e solares (no sentido de residências)” comumente traduzido por “órgãos e vísceras”. Há rivalidades e afinidades naturais entre os zang fu, que interagem constantemente: o Pulmão, associado ao “elemento metal”, “ataca” o Fígado, associado ao “elemento madeira”, e modera seu crescimento, como o metal poda a madeira; por sua vez, é ele mesmo “atacado” pelo Coração, que encarna o “elemento fogo”, o qual “derrete o metal” e assim impede que a ação do Pulmão passe de “moderação” à “destruição”.
Isto significa que, na medicina chinesa, mesmo na ordem vital saudável, há tensão constante; o que acontece é que ela é habilidosamente manejada para não se sair da harmonia e cair na enfermidade. 

Portanto, trata-se aqui de uma cultura em que a arte do guerreiro não é trucidar o adversário, fazendo-o cessar de existir, mas sim detê-lo ou limitar a sua capacidade de agressão. Por outro lado, “saúde” não remete á idéia da paz da inação, da cessação dos conflitos: estes são vistos como inerentes à vida, e para se manter na saúde é preciso habilidade para administrá-los.  

Demonstramos, portanto, que situar o Taijiquan (Tai Chi Chuan) num esquema dicotômico tipo “arte marcial” x “ginástica para saúde” é equivocado. O Taijiquan (Tai Chi Chuan) pode desempenhar inúmeros papéis sem se descaracterizar a tal ponto que se possa dizer “isso não é taiji quan”. Só para dar alguns exemplos, Taijiquan (Tai Chi Chuan) é, ou pode ser, uma modalidade de atletismo (é uma especialização da faculdade de educação física, na China); uma prática de saúde; uma arte marcial; uma série de movimentos de alto valor estético; uma prática coletiva que cria um sentimento de comunidade e pertencimento; um elemento-chave numa via de crescimento espiritual (budista, taoísta, católica…) e nenhuma dessas opções é mutuamente excludente. O Taijiquan (Tai Chi Chuan) é uma arte de vastas possibilidades, singularmente acolhedora e generosa para com seus adeptos; tentar enquadrá-lo numa definição estreita é tão sensato quanto tentar enfiar um tigre numa gaveta.